quarta-feira, 12 de março de 2014

Marcha em Portugal na Primavera de 1938 (X)

Reportagem de «O Século» sobre a prova do Alto de Pina. Depois
da confraternização vieram as dúvidas sobre as classificações.
A prova de marcha que em Coimbra iria ter lugar no dia de Natal de 1938 por iniciativa do Vitória da Arregaça e que acabou por ser anulada constituiu uma espécie de queda na realidade da marcha portuguesa da época. Depois de muitos anos em que a modalidade tinha estado no esquecimento, aquele ano ficou marcado por uma enorme quantidade de provas levadas a efeito em várias cidades do país (só em Lisboa foram pelo menos seis). À luz do conhecimento de hoje, poderia dizer-se que o número de provas realizadas traduzia um aumento desproporcionado de oportunidades de competição, tendo em conta o conhecimento e a divulgação da modalidade em Portugal. Interesse haveria, por certo, como se viu pela grande adesão de participantes em algumas dessas provas, mas o domínio da técnica e dos regulamentos seria certamente muito embrionário.

Não se estranha, por isso que aquela prova de Coimbra tivesse ficado sem efeito. Como também não se estranha o problema surgido na competição levada a cabo em Lisboa, em 18 de Dezembro desse ano, por iniciativa do Grémio do Alto do Pina. Desta vez, já não de tratava de um acontecimento patrocinado pelo trissemanário desportivo «Os Sports», mas sim pelo diário «O Século».

Este jornal começou a divulgar a iniciativa na edição de 5 de Dezembro, adiantando que «a prova do Grémio do Alto do Pina vai ficar como a mais longa até hoje realizada, pois vai ser disputada num percurso de 30 quilómetros». De seguida explicava que se tratava de uma competição de dez voltas a um circuito de três quilómetros, com partida e meta instaladas junto à sede do clube organizador, na Rua Barão de Sabrosa, e seguindo um itinerário pela Rua Alves Torgo, Avenida Almirante Reis, Praça do Chile e Rua Morais Soares.

Dois dias antes da competição, o jornal fazia uma curiosa recomendação aos atletas inscritos: «Os concorrentes devem comparecer equipados de calção, camisola, alpergatas e quatro alfinetes de dama para os números.»

No dia da prova compareceram mais de cem concorrentes, que enfrentaram não apenas as dificuldades do percurso, marcado por grandes desníveis, mas também a intempérie, traduzida na chuva que fustigou a cidade durante todo o dia. O primeiro na meta seria Albertino Loureiro, do Santoantonense. O atleta do Barreiro comandou a prova isolado de princípio a fim, ganhando todos os prémios atribuídos pelos comerciantes locais ao líder em cada passagem na meta. Cumpriu a distância em duas horas e 58 minutos, menos um minuto que o colega de equipa Augusto Silva, enquanto José da Silva, do Sporting, terminava com 2.59.16 h. Por equipas triunfava o Santoantonense F.C., seguido do Sporting Club de Portugal e do Atlético Club do Terreirinho.

Enigmaticamente, a notícia de «O Século» sobre a prova do Alto do Pina terminava dizendo: «Estas classificações têm carácter provisório e devem ser confirmadas na reunião de delegados que se realiza na quinta-feira, às 21 horas, na redacção do 'Século'.» Mas já se percebia a razão das dúvidas sobre as classificações, resultantes do facto de numerosos atletas terem sido desclassificados, havendo muitos outros que terminaram a prova mas sobre os quais recaíam acusações de «terem corrido», a começar pelo vencedor, que os «fiscais» também tinham querido desclassificar.

O desfecho da reunião de delegados, que acabou remarcada para sexta-feira, deu origem a que o jornal publicasse no dia seguinte uma notícia com um título esclarecedor: «Por proposta do 'Século' foi anulada a 'Prova de Marcha' do Grémio do Alto do Pina». O texto explicava depois que «foi acesa e prolongada a discussão; foram muitas as faltas que os delegados mutuamente atribuíam aos concorrentes». Por proposta de um representante do jornal, aprovada por unanimidade, a prova foi anulada, sendo substituída por outra que logo ali ficou marcada para 29 de Janeiro de 1939, ligando Vila Franca de Xira a Lisboa, num percurso em linha.

Era o golpe de misericórdia numa prova problemática e a confirmação de que a marcha tinha ainda um longo caminho a percorrer. A começar pelos aspectos regulamentares. Como compensação registe-se que entretanto, a 13 de Novembro, tivera lugar outra prova, ainda em Lisboa, também patrocinada por «O Século» e organizada pelo Club Desportivo de Sete Rios. Teve a extensão de 27 quilómetros (duas voltas de 13.500 metros) e saiu vencedor Modesto Pisco, do clube organizador, tendo gasto 2.30.32 h. Nos lugares imediatos terminaram Ladislau Dias (Sporting CP, 2.31.10) e Manuel Guerreiro (Secil FC, 2.31.57), enquanto o Sporting ganhava por equipas.

Apesar de ter havido 22 desclassificações «por abandono do passo de 'marcha'», desta vez não constou que tivessem surgido dúvidas ou discordâncias sobre a classificação. Ou, se as houve, o jornal não lhes deu eco, o que, especulando, é o mais provável que tenha acontecido. Restava agora esperar para ver como iria decorrer a prova de Vila Franca de Xira a Lisboa.